segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

PORTA ENTREABERTA (Escritos intemporais)


(Ele - 17/5 às 15:28)
Ela saiu para ver a chuva e deixou a porta aberta. Puxou de um cigarro e ficou à frente de casa com os olhos cinzas fixos nas gotas que tocavam uma canção na calçada. Passam-se horas e densidades de chuva enquanto ela permanece ali e um indivíduo, que estava do outro lado da rua a ouvir a mesma canção, faz movimentos com as mãos na fumaça de seu próprio cigarro e apodera-se do vento num ato mágico. Não foi sem maldade nos lábios que soprou uma mensagem que chegasse ao outro lado da rua.
Ela havia deixado a porta entreaberta e foi de assalto que ele entrou no prédio, subiu os degraus e atravessou o santuário daquela alma. Ela vinha envolta na mesma fumaça do cigarro e trazia os cabelos molhados. Deixava para trás rios de chuva pelo chão. Deitaram-se no sofá da sala e ela cantou muitas canções para ele enquanto riscava com o seu dedo estrelas cadentes no fumo de ambos. Choveu a noite inteira. E parecia uma chuva de séculos.

(Diana Veloso - 17/5 às 15:37)
Ela cantou até sua voz ficar rouca, cantou para ele todas as canções que conhecia. Ele, parado admirando a prosa dos seus lábios e acariciando-lhe o mesmo cabelo molhado trazido da chuva de outrora.
O cabelo foi secando, a fala enfraquecendo e os olhos dela foram ao encontro do rosto dele despedindo-se com um beijo e ingenuamente dizendo-lhe: ''Posso deitar em teu peito?''

(Ele - 17/5 às 15:44)
Ele não respondeu, simplesmente pôs os dedos nos labirintos do cabelo dela e levemente a trouxe para si, encostando-a ao seu peito. Fez-lhe delicados carinhos naqueles labirintos e depois, quando já sentia a pele branca e ainda molhada da chuva arrepiar-se, levantou-a e sussurrou-lhe ao ouvido: "Dá-me um raio, que dou-te o som do trovão". Os olhos dela pareciam uma tempestade.

(Diana Veloso- 17/5 às 15:54)
Suas taças inundadas já pelo sentimento que lhe corria nas veias, respondeu baixinho (e ainda de voz rouca): ''Não precisas de me dar um trovão, tu já me trouxeste a tempestade...'' Encostou fortemente a sua face no peito nu acom-panhada por lágrimas despedidas de felicidade.
Sem o dizer, apenas comentou para a sua alma: ''o tempo podia parar aqui''

(Ele - 17/5 às 16:08)
O relógio invisível do tempo obedeceu às suas ordens secretas. Com o dedo ele riscava o trajecto de cada lágrima sobre o corpo e foi carregado através da correnteza dos veios de chuva que transbordavam daquelas taças. Em seguida inundou os lábios ao beijar os dois olhos dela e sentiu o gosto frio e inebriante da sua pele. Pensou para si mesmo: "Todos os tempos de uma só vez nestes olhos: uma eternidade de silêncio e o mundo não existe mais". Lá fora, a chuva acendeu seus raios e lançou seus trovões a ecoarem, não se sabe se pelo mundo ou pela casa.

(Diana Veloso - 17/5 às 16:20)
Ela, com o coração em chama desenhava com as suas lágrimas o mapa dos dedos dele...
De olhos fechados para o relógio, começou a beber insaciantemente aquele momento e numa atitude de louca come-çou a molhar-se na sua própria chuva...
Ele, surpreso responde: ''Que estás a fazer?''
Ela sorrindo diz: ''Sentido o que deixaste à porta do meu santuário''

(Ele - 17/5 às 16:51)
Ele, surpreso e ao mesmo tempo ansioso por provar a chuva que caíra à porta do santuário, passa a testar a densidade da pele que tinha a sua frente: montes e vales, rios e vulcões, poesias escritas nos poros e canções que ao invés de notas são tremores. O caminho que chega à porta do santuário não é longo, mas ele prefere marcar passo-a-passo aquelas extensões e por vezes deita-se para ouvir o pulsar daquele solo. Quanto mais se aproxima do santuário, mais forte é o pulsar daquele mundo que desbrava. Torna-se cada vez mais difícil manter-se de pé, tamanha a chuva que cai e junta-se ao solo já húmido. Depois de tentar prolongar ao máximo possível aquele trajecto, deixa-se correr até à porta do santuário. Ao chegar ali, já com a respiração na velocidade do pulsar daquela pele que desbrava, diz ao vento: "Estou pronto para entrar no abismo". Em seguida, abre a porta do santuário e entra, tocando cada parte molhada pela chuva. Raios e trovões ensurdecem aos dois e tremores balançam as fundações da terra.

(Diana Veloso - 17/5 às 18:41)
Ela, escutando o som de cada passo pisado na sua chuva treme de ansiedade momentânea... Consciente do sonho, desta vez deixa a porta do seu santuário aberta para que ele a descubra envolvida nas melodias de suas prosas. Com um ar de gozo, abre bruscamente os seus olhos de felino somente para apreciar a vulnerabilidade da sua presa! Essa, motivo das suas poesias, afasta-se da chuva com receio, mas ao mesmo tempo podia-se notar de longe a vontade daquele animal de voltar para os seus braços. O felino, o mais temido no sonho disfarça a timidez de partilhar o mesmo desejo numa gargalhada de eco infinito. Por breves momentos, o som ouvia-se longe! Apenas o som da gota que caia no chão...Tinham sido eles, gélidos corpos imóveis no chão que fizeram com que o relógio para-se. Duas almas apenas vestidas com abraços da madrugada.

(Ele - 17/5 às 19:09)
Ele acordou na calçada sem a noção das horas. O corpo encharcado e a respiração ofegante, mas não conseguia entender porque estava ali, na calçada do outro lado da rua. Passou a mão molhada pelos cabelos e a sua visão ainda ficou por alguns momentos confusa: seria por causa da chuva que continuava a cair no seu rosto ou por conta dos sonhos tão reais que ainda corriam sobre sua pele? Ela já não estava do outro lado da rua. Por instantes pensou vê-la fechando as cortinas das janelas no primeiro andar do prédio, como se estivesse à espreita, esperando que ele acor-dasse (voltasse a si?), mas não soube dizer se a tinha visto mesmo ou se era ainda algum vestígio do sonho que teve. Sentou na calçada e jogou o cabelo para trás. Foi quando olhou para o chão ao seu lado e encontrou um desenho seu em grafite, mas no desenho ele tinha asas coloridas. Olhou para o desenho mais alguns instantes e olhou para a janela do apartamento do outro lado da rua. Deu um sorriso de lado, levantou-se e seguiu o seu caminho. Depois daquele sonho, já não sabia ao certo para onde ir...

2 comentários:

Snyder disse...

Desde o dia 4 de Janeiro que ando para comentar este belo exemplar da tua escrita...e mesmo agora não sei que dizer, desde Outubro que o mundo deu muitas voltas e o afastamento foi crescendo, a afinidade foi escasseando e admito que até o meu gosto pela leitura foi desaparecendo... Em que ponto está situada a tua "porta" para mim ??


Do leitor Assíduo

o_O

DIANA VELOSO disse...

Apesar de todas as situações adversas que foram surgindo pelas mais diversificadas razões não podes deixar perder esse gosto pela leitura... É sempre uma actividade que nos liberta a mente e nos deixam receptivos a novos conhecimentos... De nós mesmos e do mundo!